Folk Tale

Pelo zurro o burro

AuthorAlmeida Garrett
Book TitleFábulas
Publication Date1818
LanguagePortuguese
OriginPortugal

Era uma vez: diz mestre Lafontaine, Que lh'o dissera Pliedro seu amigo. Que lh'o dissera um grego corcovado... Pois tudo n'este mundo vai por ditos, Tudo se diz porque outros o disseram... E talvez que não fosse Lafontaine, Mas foi outro que tal, que vale o mesmo: Um dia... mas o fio á minha historia Não o torno a quebrar por coisa alguma; Poema que tem muitos episódios Nunca pôde ser bom, nem bons ser elles: Diz padre Horacio ou outro tal como elle D'estes que intentam accanhar o génio Com leis servis por elles arranjadas Que, segundo a moderna guapa eschola. As não pôde soífrer de taes birbantes. Um dia pois o pae dhomens e numes. Como eu ia contando aos meus leitores... -Se é que a sorte, que os nega a bons poetas, M'os deparar a mim, chulo trovista— A rogos, mas de quem ja me não lembra. Asno felpudo de orelhões cabidos Quiz transformar em fervido ginete; E ao bom Mercúrio, seu fiel ministro, Manda que o longo pèllo lhe tosquio E um bom naco cerceie das orelhas.

Era grande o burrico, nedeo e gordo, E por milagre do supremo Jove, Que sempre faz como este bons milagres, Ei-lo desimpennado e mui lampeiro. Qual andaluz corcel ou égua arábia, A par d'outros corcéis se vai trotando. O povo cavallar na forma nova Não reconhece a burrical maranha. Como elles folgazão retoiíça e pulla, Ladeia, faz corcovos, trava o passo, Emfim parece— tanto pedem numes E tal é o poder de um bom milagre!— Cavallo mestre e feito em picaria. —Qual rústico peão de bronca aldeã De tamancos nos pés, no sacco a broa, Que vem para imbarcar lá da província, E para um tio, que é senhor d'ingenho, Ricasso em pretos, em arroz, mellaço, Ingoiado apprendiz vai ser caixeiro: Morre-lhe o tio, eis o rapaz n'um sino, Vende pretos e pretas e mellaço, E vera, Cresso de cocos e patacas, Metter toda Lisboa n'um chinello : Ja por boas, luzentes amarcllas Serodeo compra fidalguesco foro... Cantes— que hoje a visita de saúde, Em cheirando a caturra, a bordo o prende, E é ja barão quando põe pé em terra. Ei-lo que alteia os hombros incolhidos, Intufa em. vento as bochechudas belfas, Impina a pansa, ingrossa a voz pausada, E no tropel dos nobres involvido, Se o não conheces, crêra-lo provindo Dos que nos velhos pergaminhos vivem. Tal ja desorelhado e uífano o burro Entre altivos ginetes campeava. Mas, oh! fado infeliz, mesquinha sorte! Quando entre os novos ledos companheiros Se vai trotando com pimpão meneio, Ei-lo depara com villan jumenta De hirsuta felpa e de costado esguio, Que os fios corta d'alma a quem a via, Como bem diz Latino-luso vate De mui gaiata e festival memória. Súbito esquece o recem-nobre estado, Lembram-lhe antigos, burricaes requebros E o tom gallanteador de asnal namoro: Estira amante o beijador focinho, E em notas de invejar por um Lablache, Psalmeia airoso, compassado orneio. Deixa os amigos e a azzurrar se fica!

Ora pois, como fez o senhor Jove, Fez certo gran'senhor de lettras gordas E protector das magras.— Foi milagre Que pela intercessão foi operado De uma a que chamam deusa da Sandice, De outra Impostura e de outra Pedantice.

Começa o caso c'o outro parecido.

Havia em certa terra muito longe, Lá nas pontas dos pés d'este hemispherio, Que dizem fora outr'ora povoada Por certo beberrão feitor de Baccho, Havia uma familia de animalculos, Zoophytos, è quasi microscópicos, Aos quaes Lineu, que achou nomes a tudo, Nunca deu nome, nem espécie ou género, Nem cu lho sei também, só sei que arrotam Textos, medalhas, chymicas rançosas, Que trazem n'algibeira um compassinho, Muito accanhado, curto e pequenino, Talhado ao molde dos miollos d'elles. Com que querem medir todo este mundo. D'esles pois-e aqui vai o gran'milagre- Burros na forma, na sciencia burros, Mas burros mais que tudo na cacholla, Quiz o tal gran'senhor citado acima Fazer— ó musa o quê?— Dize, não temas, Não fujas, dize e vai-te.— 'Uma academia' Disse a musa e safou-se ás gargalhadas. Mas que academia! — Oh! venham as brilhantes De Londres, de Paris, de Petersburgo Beber acjui sciencia não sabida De assopradas, pomposas ninharias. Que producções, que producções! Oh quanto Quanto seria mais se um deus maligno, Inimigo dos guapos académicos, Das três que Deus nos deu potencias d'alma Lhes não saccasse duas a surrelfa. Deixando so memorias e memorias... Quanto seria mais, quanto fulgira Em gordos, grossos, grandes calhamaços A portugueza, majestosa lingua, Sc os novos sábios, no começo á empresa, A antigas manhas não perdendo o aflinco, Não incontrasscm por desgraça nossa Cum pérfido azzurrar— zurrar malditto!... Ficaram no azzurrar sempre zurrando.


Text viewBook