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O fiel João
Title | O fiel João |
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Original Title | Der treue Johannes |
Original Author | Jacob & Wilhelm Grimm |
Original ID | trans-56.xml |
Language code | por |
Houve uma vez, um velho rei que, sentindo-se muito doente pensou:
"Este será o meu leito de morte!"– disse então aos que o cercavam:
- Chamem o meu fiel João.
O fiel João era o seu criado predileto, assim chamado porque durante toda a vida, fora-lhe extremamente fiel.Portanto, quando se aproximou do leito onde estava o rei, este lhe disse:
- Meu fidelíssimo João, sinto que estou me aproximando do fim;nada me preocupa, a não ser o futuro do meu filho;é um rapaz ainda inexperiente e, se não me prometeres ensinar-lhe tudo e orientá-lo no que deve saber, assim como ser para ele um pai adotivo, não poderei fechar os olhos em paz.
- Não o abandonarei nunca – respondeu o fiel João – e prometo servi-lo com toda a lealdade, mesmo que isso me custe a vida.
- Agora morro contente e em paz – exclamou o velho rei, e acrescentou:- depois da minha morte, deves mostrar-lhe todo o castelo, os aposentos, as salas e os subterrâneos todos, com os tesouros que encerram.Exceto, porém, o ultimo quarto do corredor comprido, onde está escondido o retrato da princesa do Telhado de Ouro;pois, se vir aquele retrato ficara ardentemente apaixonado por ela, cairá um longo desmaio e, por sua causa, correra grandes perigos dos quais eu te peço que o livres e o preserve.
Assim que o fiel João acabou de apertar, ainda uma vez, a mão do velho rei, este silenciou, reclinou a cabeça no travesseiro e morreu.
O velho rei foi enterrado e, passados alguns dias, o fiel João expôs ao príncipe o que lhe havia prometido pouco antes de sua morte, acrescentando:
- Cumprirei minha promessa.Ser-te-ei fiel como o fui para com ele mesmo, mesmo que isso me custe a vida.
Transcorrido o período de luto, o fiel João disse-lhe:
- Já é tempo que tomes conhecimento das riquezas que herdaste;vamos, vou mostrar-te o castelo de teu pai.
Conduziu-o por toda parte, de cima até embaixo, mostrando-lhe os aposentos com o imenso tesouro, evitando, porém uma determinada porta:a do quarto onde se achava o retrato perigoso.Este estava colocado de maneira que ao abrir a porta, era logo visto;e era tão maravilhoso que parecia vivo, tão lindo, tão delicado que nada no mundo lhe podia comparar.O jovem rei notou que o fiel João passava sempre sem parar diante daquela única porta e, curiosamente perguntou:
- E essa porta, porque não abres nunca?
- Não abro porque há lá dentro algo que te assustaria – respondeu o criado.
O jovem rei, porém insistiu:
- Já visitei todo o castelo, agora quero saber o que há lá dentro – E foi se encaminhando, decidido a forçar a porta.O fiel João deteve-o, suplicando:
- Prometi a teu pai, momentos antes de sua morte, que jamais verias o que lá se encontra, porque isso seria causa de grandes desventuras para ti e para mim.
- Não, não – replicou o jovem – a minha desventura será ignorar o que há lá dentro, pois não mais terei sossego, enquanto não conseguir ver com meus próprios olhos.Não sarei daqui enquanto não abrires essa porta.
Vendo que nada adiantava opor-se, o fiel João, com o coração apertado de angustia, procurou no grande molho a chave indicada.Tendo aberto a porta, entrou em primeiro lugar, pensando assim, encobrir com seu corpo a tela, a fim de que o rei não a visse.Nada adiantou, porém, porque o rei erguendo-se nas pontas dos pés, olhou por cima de seu ombro e conseguiu vê-la.
Mal avistou o retrato da belíssima jovem, resplandecente de ouro e pedrarias, caiu por terra desmaiado.O fiel João precipitou-se logo e carregou-o para a cama, enaqunto pensava, cheio de aflição:"A desgraça verificou-se;Senhor Deus, que acontecerá agora?"Procurou reanimá-lo, dando-lhe uns goles de vinho, e assim que o rei recuperou os sentidos, suas primeiras palavras foram:
-Ah!De quem é aquele retrato maravilhoso?
-É da princesa do Telhado de Ouro – respondeu o fiel João.
- Meu amor por ela, - acrescentou o rei, - é tão grande que, se todas as folhas das árvores fossem línguas, ainda não bastariam para exprimi-lo;arriscarei, sem hesitar, minha vida para conquistá-la;e tu, meu fidelíssimo João, deves ajudar-me.
O podre criado meditou, longamente, na maneira conveniente de agir;porquanto, era muito difícil chegar à presença da princesa.Após muito refletir, descobriu um meio que lhe pareceu bom e comunicou ao rei.
- Tudo o que a circunda é de ouro:mesas, cadeiras, baixelas, copos, vasilhas, enfim, todos os utensílios de uso doméstico são de ouro.Em teu tesouro há cinco toneladas de ouro;reúne os ourives da corte e manda cinzelar esse ouro;que o transformem em toda espécie de vasos e objetos ornamentais:pássaros, feras e animais exóticos;isso agradará a princesa;apresentar-nos-emos a ela, oferecendo essas coisas todas e tentaremos a sorte.
O rei convocou todos os ourives e estes passaram a trabalhar dia e noite até aprontar aqueles esplêndidos objetos.Uma vez tudo pronto, foi carregado para um navio;o fiel João disfarçou-se em mercador e o rei teve de fazer o mesmo para não ser reconhecido.Em seguida zarparam, navegando longos dias até chegarem à cidade onde morava a princesa do Telhado de Ouro.
O fiel João aconselhou o rei a que permanecesse no navio esperando.
- Talvez eu traga comigo a princesa, - disse ele;portanto, portanto, providencia para que tudo esteja em ordem;manda expor todos os objetos de ouro e adornar caprichosamente o navio.
Juntou, depois, diversos objetos de ouro no avental, desceu à terra e dirigiu-se diretamente ao palácio real.Chegando ao pátio do palácio, avistou uma linda moça tirando água da fonte com dois baldes de ouro.Quando ela se voltou, carregando a água cristalina, deparou com o desconhecido;perguntou-lhe quem era.
- Sou um mercador, - respondeu ele, abrindo o avental e mostrando o que trazia.
- Ah!Que lindos objetos de ouro!– exclamou a moça.
Descansou os baldes no chão e pôs-se a examiná-los um por um.
- A princesa deve vê-los, - disse ela;gosta tanto de objetos de ouro que, certamente, os comprará todos.
Tomando-lhe a mão, conduziu-o até aos aposentos superiores, que eram os da princesa.Quando esta viu a esplêndida mercadoria disse encantada;
- Está tudo tão bem cinzelado que desejo comprar todos os objetos.
O fiel João, porém, disse-lhe:
- Eu sou apenas o criado de um rico mercador;o que tenho aqui nada é em comparação ao que meu amo tem no seu navio;o que de mais artístico e precioso se tenha já feito em ouro, ele tem lá.
Ele pediu que lhe trouxessem tudo, mas o fiel João retrucou:
- Para isso seriam necessários muitos dias, tal a quantidade de objetos.Seriam necessárias também muitas salas de expô-los, e este palácio, parecem-me, não tem espaço suficiente.
Espicaçou-lhe assim a curiosidade e o desejo;então ela concordou em ir até ao navio.
- leva-me, quero ver pessoalmente os tesouros que teu amo tem a bordo.
Radiante de felicidade, o fiel João conduziu-a a bordo do navio e quando o rei a viu achou que era ainda mais bela do que no retrato;seu coração ameaçava saltar-lhe do peito de tanta alegria.O rei recebeu-a e a acompanhou-a ao interior do navio.O fiel João, porém, ficou junto ao timoneiro, ordenando-lhe que zarpasse depressa.
- A toda vela, faça com que voe como um pássaro no ar, - dizia ele
Entretanto, o rei ia mostrando à princesa, um por um, os maravilhosos objetos de ouro:pratos, copos, vasilhas, pássaros, feras e monstros, exaltando-lhes as formas e o fino cinzelamento.Passaram, assim, muitas horas na contemplação daquelas obras de arte;em sua alegria ela nem sequer percebera que o navio estava navegando.Tendo examinado o último objeto, agradeceu ao mercador, dispondo-se a voltar para casa;mas chegando ao tombadilho, viu que o navio corria a toda vela rumo ao mar alto, distante da costa.
- Ah, - gritou apavorada, - enganaram-me!Fui raptada, estou à mercê de um vulgar mercador, prefiro morrer!
O rei, então, pegando-lhe a mãozinha disse:
- Não sou um vulgo mercador;sou um rei de nascimento não inferior ao teu.Se usei de astúcia para te raptar, fi-lo por excesso de amor.Quando vi pela primeira vez teu retrato, a emoção prostou-me desmaiado.
Ouvindo essas palavras, a princesa do Telhado de ouro sentiu-se confortada e de tal maneira seu coração se prendeu ao jovem, que consentiu em se tornar sua esposa.
O navio continuava em mar alto e os noivos extasiavam-se a contemplar aqueles objetos todos;enquanto isso, o fiel João;sentado à proa, divertia-se a tocar o seu instrumento;viu, de repente, três corvos esvoaçando, que pousaram ao seu lado.Parou de tocar, a fim de ouvir o que grasnavam, pois tinha o dom de entender a sua linguagem.Um deles grasnou:
- Ei-lo que vai levando para casa a princesa do Telhado de Ouro?
- Sim, - respondeu o segundo, - mas ela ainda não lhe pertence!
- Pertence, sim, - replicou o terceiro, - ela está aqui no navio com ele.
Então o primeiro corvo tornou a grasnar:
- Que adianta?Quando desembarcarem, sairá a seu encontro um cavalo alazão, o rei tentará montá-lo;se o conseguir, o cavalo fugirá com ele, alcançando-se em vôo pelo espaço, e nunca mais ele voltará a ver a sua princesa.
- E não há salvação?– perguntou o segundo corvo.
- Sim, se um outro se lhe antecipar e montar rapidamente no cavalo;pegar o arcabuz que está no coldre e conseguir com o mesmo matar o cavalo;só assim o rei estará salvo.Mas quem é que está a par disso?Se, por acaso, alguém o soubesse o prevenisse o rei, suas pernas, dos pés aos joelhos, se transformariam em pedra, quando falasse.
O segundo corvo falou:
- eu sei mais coisas.Mesmo que matem o cavalo, o jovem rei não conservará a noiva, pois, ao chegarem ao castelo, encontrarão numa sala um manto nupcial que lhes parecerá tecido de ouro e prata, ao invés disso é tecido de enxofre e de pez.Se o rei o vestir, queimar-se-á até a medula dos ossos.
O terceiro corvo perguntou:
- E não há salvação?
- Oh, sim, - respondeu o segundo, - se alguém tendo calçado luvas, agarrar depressa o manto e o atirar ao fogo para que se queime, o jovem rei estará salvo.Mas que adianta se ninguém sabe disso?E se soubesse e prevenisse o rei, se transformaria em pedra desde os joelhos até o coração.
O terceiro corvo, por sua vez, falou:
- Eu ainda sei mais:mesmo que queimem o manto, ainda assim o jovem rei não terá a noiva;pois, após as núpcias, quando começar o baile e a jovem rainha for dançar, ficará repentinamente pálida e cairá no chão como morta.E se alguém não a acudir depressa e não sugar três gotas de sangue de seu seio direito, cuspindo-o em seguida, ela morrerá.Mas se alguém souber disso e o revelar ao rei, ficará inteiramente de pedra desde a cabeça até as pontas dos pés.
Finda essa conversa, os corvos levantaram vôo e sumiram.O fiel João, que tudo ouvira e entendera, tornou-se, desde então, tristonho e taciturno.Se não contasse o que sabia ao seu amo, este iria de encontro à própria infelicidade;por outro lado, porém, se lhe revelasse tudo, seria a própria vida que sacrificaria.Por fim resolveu-se:"Devo saldar meu amo, mesmo que isso me custe a vida."
Quando, portanto, desembarcaram, sucedeu exatamente o que havia predito o corvo:saiu-lhes ao encontro um belo cavalo alazão.
- Muito bem – exclamou o rei, - este cavalo me levará ao castelo, e fez menção de montá-lo.
O fiel João, porém, antecipou-se-lhe, saltou na sela, tirou o arcabuz do coldre e, num instante, abateu o cavalo.Os outros acompanhantes do rei, que não simpatizavam com o fiel João, exclamaram indignados:
- Que absurdo!Matar um animal tão belo!Tão apropriado para levar nosso rei ao castelo!
- Calem-se, deixem-no fazer o que achar conveniente;sendo meu fidelíssimo João, deve ter motivos razoáveis para agir assim.
Encaminharam-se todos para o castelo;na sala depararam com o manto nupcial, que parecia tecido de ouro e prata, sobre uma salva.O jovem rei logo quis vesti-lo, mas o fiel João, com gesto rápido afastou-o e, de mais enluvadas, agarrou o manto e o lançou ao fogo, que o consumiu imediatamente.
Os acompanhantes do rei tornaram a protestar contra esse atrevimento:
- Vejam só!Ousa queimar até o manto nupcial do rei!
Mas o rei tornou a interrompê-los:
- Calem-se!Deve haver um sério motivo para isso;deixem que faça o que deseja, ele é meu fidelíssimo João.
Tiveram inicio as bodas, com grandes festejos.Chegando a hora do baile, também a noiva quis dançar;o fiel João, atento às menores coisas, não deixava de observar-lhe o rosto;de súbito, viu-a empalidecer e cair como morta.De um salto, aproximou-se dela, tomou-a nos braços e carregou-a para o quarto, reclinando-se em seu leito;ajoelhando-se ao lado da cama, sugou-lhe do seio direito três gotas de sangue e cuspiu-as.Com isso ela imediatamente recuperou os sentidos e voltou a respirar normalmente.
Orei, porém, que a tudo assistia sem comprometer as atitudes do fiel João, ficou furioso e ordenou:
- Prendam-no já!Levem-no para o cárcere.
Na manhã seguinte, o fiel João foi julgado e condenado a morte.Levaram-no ao patíbulo, mas, no momento de ser executado, de pé sobre o estrado, resolveu falar.
- Antes de morrer, todos os condenados têm direito de falar;terei eu também esse direito?
- Sim, sim – anuiu o rei
Então o fiel João revelou a verdade
- Estou sendo injustamente condenado;sempre te fui fiel.
E narrou, detalhadamente, a conversa dos corvos, que ouvira quando estavam a bordo em alto mar.Fizera o que fizera só para salvar o rei, seu amo.Então, muito comovido, o rei exclamou:
- Oh, meu fidelíssimo João, perdoa-me!Perdoa-me!Soltem-no imediatamente.
Porém, assim que acabara de pronunciar as ultimas palavras, o fiel João caiu inanimado, transformado em uma estátua de pedra.
A rainha e o rei entristeceram-se profundamente, e este ultimo em prantos, lamentava-se:
- Ah!Quão mal recompensei tamanha fidelidade!
Deu ordens para que a estatua fosse colocada em seu próprio quarto, ao lado da cama.Cada vez que seu olhar caía sobre ela, desatava a chorar, lamuriando-se:
- Ah!Se me fosse possível restituir-te vida, meu caro, meu fiel João.
Decorrido algum tempo, a rainha deu a luz dois meninos gêmeos, os quais cresceram viçosos e bonitos e constituíam a sua maior alegria.Uma ocasião, enquanto a rainha se encontrava na igreja e os dois meninos brincavam junto do pai, este volveu-se entristecido para a estatua suspirando:
- Se pudesse restituir-te a vida, meu fiel João!
Então viu a pedra animar-se e falar:
- Sim – disse ela – está em seu poder restituir-me a vida, a custa, porém do que te é mais caro.
Assombrado com essa revelação, o rei exclamou:
- Por ti darei o que me seja mais caro nesse mundo!
A pedra então continuou:
- Pois bem;se, com tuas próprias mãos, cortares a cabeça teus dois filhinhos e me friccionares com seu sangue, eu recuperarei a vida.
O rei ficou horrorizado à idéia de ter que matar seus filhos estremecidos;mas lembrou-se daquela fidelidade sem par que lhe dedicara o fiel João, a ponto de morrer para salvá-lo e não hesitou mais:sacou a espada e decepou a cabeça dos filhos.Depois friccionou com o sangue deles a estátua de pedra e esta logo se reanimou aparecendo-lhe vivo e são o seu fiel João.
- A tua lealdade – disse-lhe ele, não pode ficar sem recompensa.
Então apanhando as cabeças dos meninos, recolocou-as sobre os troncos;untou-lhes o corte com o sangue deles e, imediatamente, os garotos voltaram a saltar e a brincar como se nada houvesse acontecido.
O rei ficou radiante de alegria;quando viu a rainha que vinha voltando da igreja, escondeu o fiel João e os meninos dentro de um armário.Assim que ela entrou, perguntou-lhe:
- Foi a igreja rezar?
- Sim, respondeu ela – mas não cessei de pensar no fiel João;por nossa causa ele foi tão desventurado!
Então o rei insinuou:
- minha querida mulher, nós poderíamos restituir-lhe a vida;mas custa a vida de nossos filhinhos.Acha que devemos sacrificá-los?
A rainha empalideceu, sentindo o sangue gelar-se-lhe nas veias;contudo animou-se e disse:
- Pela incomparável fidelidade que nos dedicou acho que devemos.
Felicíssimo por ver que a rainha concordava com ele, o rei abriu o armário e fez sair as crianças e o fiel João.
- Graças a Deus – disse – aqui está ele desencantado e temos os nossos filhinhos.
Depois contou-lhe detalhadamente o ocorrido.E, a partir de então, viveram todos juntos, alegres e felizes, até o fim da vida.